14.6.10

Naquela mesa

A perda de um ente querido é uma coisa que não está no campo do dizível; a gente apenas tenta, sem sucesso, esgotar a dor. As coisas prazerosas perdem o sabor, o curso dos dias é absurdo, o tempo se estende muito ou passa sem que se perceba. É um torpor que não parece vir de fora. É como se a ausência definitiva do ser amado despertasse uma reação química, como uma droga que entorpece.
O paradoxal é que os sentidos ficam anestesiados para umas coisas, mas algo insiste em latejar. A vida burocrática é premente, mas não se consegue ouvir mais do que ecos. O cotidiano passa a ser uma música de fundo, tocando suave como trilha sonora daquele desconforto que é a evidência da morte. E do quanto é incômodo e sem sentido continuar a vida nessas condições.
Passado o torpor, as horas voltam a ter sessenta minutos e os dias, vinte e quatro horas. As pessoas que ofereceram sua solidariedade começam a desaparecer. A razão faz-se necessária, para lidar com as coisas desimportantes de sempre. A vida continua e é preciso enfrentá-la, por vergonha, obrigação, culpa, ou simplesmente porque viver é bom. Mas durante o luto — qualquer luto —, existe um hiato.
Enquanto dói não tem para onde racionalizar. Dói, sem dar fisgada em um lugar, dói no corpo todo, principalmente no peito e na altura da garganta, em um lugar onde a gente não pode encostar, nem passar remédio. Dói no que não se toca. E olha: dor bem doída mesmo não passa. Porque quando a gente lembra que doeu começa a sentir de novo. A dor é a ausência da paz. Seja a paz do corpo ou do espírito. A gente fica desprotegido e a dor acaba virando raiva. É muito injusto sentir dor. Mas a dor é um sintoma. De que um dia houve tranquilidade na pele, de que já aconteceu o oposto da dor. É a ausência que torna as coisas mais vivas, mais presentes. A gente só sente falta, só percebe aquele lugar vazio à mesa, porque quem ocupava aquele espaço enchia a vida de sentido. A dor da perda é um sintoma da felicidade, que só se manifesta durante a tristeza. Essa coisa da sombra que evidencia o objeto. Não tem nada que pareça mais com a liberdade do que uma gaiola aberta. A liberdade é o pássaro que a gente não vê.
Pior que a saudade é a tristeza de esquecer. O esquecimento é a morte real, é o desaparecimento. Enquanto há memória, ainda que vaga e embotada, há vida. Não é porque não vemos algo que essa coisa deixa de existir. Ninguém nunca viu o amor e ele é tema de discussão, desde que o mundo é mundo. Também a dor é invisível. Por acaso ela não existe?
É preciso deixar doer. Deixar a dor em paz, porque um espaço vazio é a lembrança do conteúdo. Aprender a viver com tudo: ausência e silêncio e cansaço e incompreensão. A lágrima, o aperto, a agonia. Se você se proteger de tudo isso, vai afastar a alegria de ter algo para perder. Será que é melhor nunca ter tido?
Eu também perdi alguém. Há muitos anos. Houve um tempo em que eu cheguei a esquecer a voz, o cheiro, a textura dos cabelos dele. Depois voltaram a lembrança, os sonhos e a evidência da falta. Hoje é a ausência quem me abraça. E eu posso chorar em paz.

1 Comentários:

Blogger Nina Sampaio disse...

Texto belo. Diz muito do muito que sinto. Ainda. Para sempre. Porque "dor bem doída mesmo não passa". A relação que passei a ter com a música que deu título ao teu post também é toda especial e você soube bem expressar a especificidade de viver tal perda.
Saudades.
Saudades de você também.

21:06  

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